quadros de lisboa desaparecida


Era notável a obra do pintor, nascido num 28 de Maio, medalhado em Dia da Raça, falecido em dia de Acção de Graças.
Ele eram quadros com motivos alfacinhas em desenhos geométricos, uns rectângulos a fazer de Mar da Palha, uns triângulos a fazer de pináculos, uns semicírculos a fazer de zimbórios, uns rectângulos a imitar casario, uns quadrados a imitar janelas,

outros mais pequenos a servir de vidraças, umas circunferências a servir de sóis e copas de árvores, uns traços a servir de gaivotas e andorinhas a adejar num céu sem nuvens, uma bênção este nosso clima, solarengo, temperado, clemente, o melhor que temos do pouco que temos para dar. 
Muitas sardinheiras, manjericos e craveiros a colorear varandas, muitos arquinhos e balões a enfeitar ruelas e vielas, violas e guitarras ao despique, cantadeiras de lutuoso xaile a deplorar o fadário dos amantes desditosos. 
Fogareiros, eléctricos, autocarros de dois pisos e um chaço ou outro a atravancar o trânsito na Baixa, a provocar o pandemónio
na Conceição, na Prata, no Ouro, na Augusta, no Rossio, no Terreiro do Paço, citem-se os topónimos nobres da cidade por ordem crescente de importância e barafunda, ai que saudades das seges, das caleches, dos americanos, dos choras, das tipóias, quando Lisboa era Lisboa. 
Faias e pinóias a chegar da rambóia, desta vez durou até o Sol raiar, tirando hoje é sempre assim, gingam o corpo macho, trazem um Definitivos ao canto da boca, boina ao canto da mona, casaco assertoado, camisa esgargalada a deixar entrever do torso o medalhão de ouro e a grenha varonil, pantalonas à janota, botins à catita, de carneira como a moda dita, passeiam-se de braço dado, sem que o embaraço os tolha, com mulheres de má nota, que mau porte não têm. 
Palafreneiros, cavalariços, estribeiros, tratadores, fossem lá o que fossem, jóqueis não seriam que lingrinhas nem tanto o são e para cavaleiros falta-lhes a classe, acabadinhos de chegar do picadeiro, da coudelaria, do estábulo, ainda fedem a estrume, vieram de aturar pilecas e palafréns, garanhões não que os garanhões são eles, jaqueta de cheviote, de alamares os mais chançudos, calça justa a enaltecer o chumaço de entre pernas, botas de cano alto à montador, olhos melados de cama fácil, o piropo artilhado na ponta da língua, as mãos hábeis no apalpão furtivo, o badalo desejoso de tocar a rebate, um marmanjo, não sendo de pau feito, carga de pau gosta de dar, isto no sentido extremoso que o termo tem, enquanto o pau vai e vem folga a lascívia, folgaza o homem que homem seja, fanático por cavalarias altas e manejos de pingalim. 
Sopeiras e magalas a fazer pé-de-alferes, os marujos atracados às varinas, a lançar o arpão, a ganhar amarras, a deitar âncoras à vida. Gabirus e flausinas a flertar pela Garrett, tentam o lance, lançam a bisca, laureiam a pevide, tomam café na Brasileira, o dinheiro não dá para mais, namoram as vitrinas da Havaneza, da Jerónimo Martins, da José Alexandre, sedução sem consumação, vão ver como param as modas pelas montras da Paris em Lisboa, do Último Figurino, da Ramiro Leão, dos Armazéns do Chiado, do Convento do Espírito Santo da Pedreira já nada lhe sobra, os objectos de devoção são agora outros, estão só a olhar, a augar, à mercadoria exposta não se lhe pode chegar, param na Bertrand os mais letrados, raros são os que à escola foram e estes notam-se, os jornais que eles levam sob os sovacos, o Diário da Manhã, o Novidades, o Mundo Desportivo, A Bola, e as revistas que elas trazem nas mãos, Selecções Femininas, Modas e Bordados, Mãos de Fada, a mulher quer-se prendada, distinguem-nos dos que não sabem ler ou que esse gosto não têm. 
Velhos e vagantes a descer ao Pote das Almas, vão à Boa-Hora, Pátio das Comédias e de leis, há lá melhor diversão do que assistir aos autos-de-fé com que se punem os do contra, Caxias será pouco, Limoeiro será nada, quanto muito indulgência do magistrado de condenáveis simpatias. 
Calhandreiras a esquadrinhar os actos de cada um, há que velar para que os costumes se não relaxem, anda para aí muita depravação, que putedo, Ti Alfredo!, onde é que isto vai parar?, no meu tempo não havia disto, arrulhávamos da varanda para a rua e da marquise para o saguão, corte mais acercada só com pau-de-cabeleira, beijos mais atrevidotes só no dia do casório, com a bênção do padre feita e papel assinado na mão, “nupciar” só com lençol de permeio, esburacado lá por baixo onde as partes se acasalam, se vêm mas não se vêem, e viva o velho!, valham-me a Virgem e o Cristo Redentor, o mundo está do avesso, de cuecas, de mamas ao léu, de cu virado para o céu. 
Sinaleiros e outra guarda, municipal, republicana, militar, de segurança pública, de segurança do Estado, de costumes, diurna e nocturna, fardada ou à paisana, na ronda e na ronha a preservar a concórdia, para que a ordem reine a Sul, neste torrãozinho de Sol e sal, o nosso querido Portugal. 
Limpa-chaminés e carvoeiros a regressar a casa, já as mulheres os esperam com uma bacia de água tépida para poderem chapinhar caras e mãos enfarruscadas, no estado em que estão é que pode lá ser, fazem lembrar um Carnaval negregado e o Entrudo já lá vai há um ror de meses, hoje é Dia de Finados, celebrações menos parecidas não há nem pode haver. 
Rezadeiras de negro a entrar na Igreja dos Italianos, na Basílica dos Mártires, uranistas de vício ateado a penetrar em urinóis de públicos apertos e privados alívios, perversão é como água-benta, cada qual toma a que quer e que bom proveito lhes faça. 
Pescadores e almeidas e estafetas nas suas fainas, varreduras e andanças, calceteiros a empedrar calçadas, aqui das pretas, ali das brancas, xadrez ou damas em gigante tabuleiro de jogos de pés. 
Marçanos a pasmacear do lado de lá de balcões de pouca venda, picheleiros a feirar estanhos e latões, oleiros e cesteiros a comerciar os artefactos do seu labor. 
Ferros-velhos e aguadeiros a aguentar a canga que o destino lhes impôs, moços de fretes e amoladores a amolar por mor da famelga que não pára de crescer, uma mulher fecunda, um rancho de crias e mais a sogra, casamos com a filha, sai-nos a mãe no bolo-rei, ácida fava, amarga sina. 
Vendedeiras a impingir a deleitosa fava-rica, mais o rico figuinho de capa rota, mais a bela castanha assada, há quentes e boas, quentinhas, mais o carapau, o rodovalho e a faneca, o badejo e a abrótea, oh freguesa!, com franqueza!, se cheira mal não é a fénico, o peixe é que deu uma bufa, ou então cagou-se, vá-se lá saber. 
Bufarinheiros a alardear bugigangas em torcilhões de goela, charlatões a mercadejar panaceias de efeito duvidoso, medicinais ou terapêuticas será milagrório, patranha de quitandeiro. 
Ciganas a ler as palmas de mãos calosas, a vaticinar sombrio porvir, cauteleiros a apregoar risonho futuro, lunáticos a prever o iminente fim do mundo numa morte tantas vezes prognosticada e outras tantas adiada. 
Ardinas a retumbar recentes passados, ora descoroçoantes, ora exaltantes, ora exultantes, olha as cheias, trás as cheias!, tudo sobre o Santo Padre em Fátima, enchente no santuário dos pastorinhos nunca vista em tempo algum!, assalto ao Banco, a Figueira em polvorosa!, o D. Maria num braseiro, D. Amélia tem azar!, incêndio no Avenida, D. Amélia tem enguiço!, há petróleo em Cabinda!, há diamantes em Angola!, guardado está o bocado para quem o há-de meter num sítio que só eles sabem, banco suíço ou do fisco o paraíso, de África e da guerra meias-palavras bastam, ponto final, fim de redacção, moita-carrasco, os carrascos não dormem em serviço, a Censura azulou as provas que foram a exame prévio estava a alvorada na sorna, não pregou olho o postilhão mesmo que da Luz Soriano à Misericórdia seja um pulinho, é só atravessar a Fiéis de Deus, ou não fosse ela travessa, travessa e não travessa ou lascarinha sendo ela de quem é, dos fidelíssimos devotos, vai num pé e vem noutro o mensageiro, não lhe vem a espertina do receio da corrida mas do medo da subida, pelos tortos degraus do tugúrio, até ao último andar onde se aquartelam os guardadores do que se deve ou não dizer, do que se pode ou não saber, fraquejam-lhe as pernas, tremem-lhe as mãos sempre que entrevê o guiché, mais parece a guilhotina que o vai amputar, um sublevado sem braços não escreve, um conjurado sem cabeça não pensa, um amotinado sem pernas não corre, sente um nó na garganta, uma moinha à boca do estômago sempre que é mirado e escalpelado por algum dos coronéis com carranca de poucos amigos, alguns amigos deverão ter, o poder granjeia amizades, mais a mais um poder agradecido, os censores riscam, desaprovam, desautorizam, toleram com cortes, desaconselham a insubordinação, travam a revolução, tardam a rebelião. 
O toureiro a estracinhar do toiro as carnes doloridas, reluzem trajes de luces, maneiam-se muletas, voluteiam capotes, escornicha o bicho, de derrote em derrote a derrota é certa, será fatal, que verónica!, que chicuelina!, olé!, entram cavaleiro e cavalgadura, qual é qual não se distingue, confundem-se no porte altivo, no olhar vivo, nas cortesias como convém à tradição, olé!, peões de brega a acicatar o toiro, forcados a pegarem-no de caras, a atacarem-no de cernelha, a agarrarem-no pelos cornos como nunca agarraram a vida, olé!, bandarilheiros a cravar bandarilhas no cachaço do animal já ferido, bandeira branca é que não há, não há quem a desfralde sendo tão bravia a besta fera, olé!, o inteligente, se é que o é e não obtuso, a mandar tocar um paso doble, dobres antecipados pelo toiro que se esvai em sangue, se desfaz em raiva, sai de cena numa agonia, olé!, vibra a praça em uníssono, que faena!, que festa!, olé!, toureiros e cavaleiros, rabejadores atrás, dão a volta à arena para o endeusamento final, só deuses, como eles o são, têm o poder de pôr e dispor da vida, chovem flores, esvoaçam mantilhas, as das mães e as das filhas, a muchachos garbosos nada se lhes pode negar, assim eles queiram, assim elas possam dar o que eles querem, olé!, olé!, soltam urros os aficionados, olé!, olé!, não aos toiros de morte, nós, por cá, abatêmo-los na discrição dos curros, de Espanha nem boa lide nem ventos de bonança mas nós, por cá, primamos pela temperança. 
E cacilheiros, e traineiras, e catraios e muletas a vogar estuário fora, a inaugurada ponte, de Salazar em solene baptizo, a orgulhecer as massas, populares dizem delas os altivos, mais altaneiros do que a ponte que vai tão alta como outra nunca se viu, nem aqui nem em parte alguma. 
E astrolábios, e rosas-dos-ventos, e pínulas, balestilhas, e caravelas estilizadas, esterlicadas que nem faluas, que nem fragatas, muitas gáveas, muito cordame, velame e cavername, tantos riscos e rabiscos, pinceladas e borradelas, esferas armilares, flâmulas verdes e encarnadas e amarelas em preito à gesta dos descobrimentos, à saga do Portugal de aquém e além tristeza, aos heróis de mar e guerra, à evangelização dos bárbaros. 
Porém, da produção pictórica não constam, mesmo que por meio de riscos e de rabiscos, pinceladas e borradelas, os mais pobres entre os pobres, ser pobre não é graça nem graça tem, é desgraça, por isso os quadros não devem ter vagabundos, vagamundos ainda vá que não vá, está-nos nos genes, na nossa índole de andarilhos, na massa do sangue que é nosso, não se condena quem vá calcorrear mundo a fomentar a fé cristã, não se reprova quem emigra se por cá falta não faz, mas quebra-esquinas é que não, nem um estropiado a espojar-se às portas de Santa Engrácia ou do mosteiro que aos jeronimitas deu guarida, nem um rafeiro que seja a tornar mais real a cena, nenhum indício de mendicância, nada que faça lembrar infortúnios já que a arte, como as mundanas, quer-se formosa e posta a render e ninguém gosta de escarrapachar agruras pelas paredes lá de casa. 

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