a verdade dos números contra os detractores de abril


Não desdenho Abril e o muito que, ainda assim, se conseguiu ao longo das quase quatro décadas que já lá vão dessa grande alvorada de esperança, desse “dia claro e limpo” de que falou Sophia de Mello Breyner num dos seus poemas, alusivo à data. Quanto mais não fosse, os portugueses ganharam o direito de se expressar livremente, uma conquista tão importante que, só por si, justifica que festeje, não através de folclóricas passeatas anuais ou palavreado vazio de sentido, mas no meu íntimo e todos os dias da minha vida, o derrube do regime anterior. O que condeno, isso sim, é tudo aquilo que Abril frustrou, e também foi muito, o que se deixou de fazer em função de compadrios, corrupção, clientelismos vários e a manifesta incapacidade, por incompetência ou laxismo, que sucessivos governos têm demonstrado em cumprir e fazer cumprir os direitos fundamentais dos portugueses, consagrados na Constituição Portuguesa. 

Se não, vejamos: 

Segundo a Constituição, o Estado deve promover “o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses”. Toda a gente sabe, e as estatísticas são públicas e imunes à manipulação, que Portugal é um dos países da Europa comunitária com o mais elevado nível de desigualdade na distribuição da riqueza, fosso que tende a agravar-se. Entre as causas para esta situação, uma delas reside na política de remuneração salarial da larga maioria dos portugueses, das menos generosas entre as praticadas entre esse mesmo grupo de países, sem que o preço ao consumidor dos produtos básicos seja consentâneo com essa tendência, muito antes pelo contrário. Num estudo da Eurostat, de Junho de 2011, verificava-se já na altura que Portugal se aproximava a passos largos da média europeia em matéria de custo de vida, chegando até, nalguns casos, a ultrapassá-la largamente (estes valores terão sido em muitos casos excedidos à luz dos aumentos entretanto verificados desde Junho de 2011, e tenderão a agravar-se com a nova política fiscal prevista na proposta de Orçamento de Estado para 2012). Vejamos, mesmo assim, alguns números: 

No que concerne aos preços da comida e bebidas não-alcoólicas, estávamos em Junho de 2011 apenas 12% abaixo da média da Europa (neste caso, o estudo abrange todos os 27 países), valor nada animador se tivermos em linha de conta o nosso nível de salários. Por exemplo, o nosso ordenado mínimo é de 566 euros mensais (valor calculado segundo critérios da Eurostat, ao que julgo adicionando os subsídios de férias e de Natal), menos 24% do que em Espanha (748 €), menos 48% do que no Reino Unido (1.086 €), menos 59% do que em França (1.365 €) e, finalmente, mais de 60% inferior aos ordenados mínimos praticados na Holanda e na Bélgica (ambos com mais de 1.400 € por mês). Nesses mesmos países, o índice do preço da comida e das bebidas não-alcoólicas é de 100 (igual à média europeia) no Reino Unido, de 97 em Espanha, de 112 em França, de 106 na Holanda e de 112 na Bélgica. Ou seja, grosso modo um belga paga mais 24% do que um português pelo mesmo cabaz de produtos alimentares e bebidas não-alcoólicas, sendo que o ordenado mínimo belga é, sensivelmente, 60% superior ao português. 

Já no que diz respeito ao vestuário, encontramo-nos na média europeia (índex 100), em posição de nítida desvantagem se nos compararmos com países de melhores níveis salariais, como a Grã-Bretanha (índex 89 no preço do vestuário, ou seja, menos 11% do que a média europeia) e Espanha (índex 90). Por outras palavras, e de uma forma muito simplista, o mesmo guarda-roupa custa-nos, em Lisboa, mais 11% do que em Londres e mais 10% do que em Madrid. 

Considerando que estou a basear-me num estudo de Junho de 2011, antes do agravamento brutal do IVA em 17% para os preços do gás e electricidade, os seus custos em Portugal já eram, mesmo assim, escandalosamente elevados: + 13% do que a média europeia. Espanha paga menos 5% do que a média europeia, a Grã-Bretanha encontra-se na média europeia, França fica 2% abaixo da média, a Bélgica + 9% e, finalmente, a Holanda + 15% (estes dois últimos países, repete-se, com salários mínimos cerca de 60% superiores aos portugueses). 

Relativamente a transportes e comunicações, em Junho de 2011 estávamos 20% acima da média europeia para despesas com transporte próprio (a mais elevada da Europa, com excepção da Dinamarca e da Noruega), menos 21% para serviços de transporte público (se bem que este tenha sofrido um aumento recente que nos terá aproximado da média europeia) e mais 2% em comunicações. 

Acresce a tudo isto, agravando ainda mais este cenário já de si pouco lisonjeiro, o facto do Imposto de Valor Acrescentado (IVA), em Portugal, ser dos mais elevados da zona euro, com novo agravamento previsto na proposta de Orçamento de Estado para 2012. Argumentar-se-á que a nossa produção é mais reduzida do que a da maioria dos países europeus, sendo esta a principal razão para que os salários sejam dos mais baixos, não acompanhando a subida de preços e impostos. Não é uma asserção totalmente correcta. Em dados fornecidos mais uma vez pela Eurostat, entidade acima de qualquer suspeita, verificamos que sim, que é verdade, a nossa produtividade ainda é baixa, mas o salário médio dos outros países é superior ao de Portugal bastante mais do que a sua produtividade é superior à portuguesa. Um só exemplo: o salário médio dos alemães está 181% acima do português; contudo, a produtividade por empregado alemão é apenas 91% maior do que a de um trabalhador português. 

“É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológicos”. Também neste ponto, os atropelos à Constituição são notórios. A segurança no emprego é cada vez mais ténue, anuncia-se a alteração do conceito de despedimento por justa causa, resultando na prática na sua liberalização, a precariedade é uma chaga que afecta milhares de pessoas em Portugal e, tragicamente, a taxa de desemprego não cessa de aumentar. 

Mas não ficamos por aqui. Diz a Constituição que o trabalhador tem direito “Ao repouso e aos lazeres, a um limite máximo da jornada de trabalho, ao descanso semanal e a férias periódicas pagas”. Todos estes preceitos foram comprometidos com as recentes medidas de austeridade anunciadas para o Orçamento de Estado de 2012, a serem submetidas à aprovação da Assembleia da República. De facto, estuda-se o alargamento do horário de trabalho, ou a sua flexibilização como alguns já alvitram, a possibilidade de cortes em feriados e pontes e a redução ou mesmo eliminação dos subsídios complementares de férias e Natal durante os próximos 2 anos, afectando sobretudo os funcionários do Estado. 

Não se deverá, contudo, inferir que tudo foi negativo, que muito pouco se conseguiu alcançar com a mudança de regime político operada após o 25 de Abril de 1974. Na verdade, em muitas áreas cumpriram-se as expectativas dos portugueses, respeitando – e até, como no caso da saúde, ultrapassando – os preceitos constitucionais por que os nossos governos devem, primordialmente, reger a sua actuação. 

Vejamos alguns dados: 

A esperança de vida dos portugueses passou, na década de 1970, da idade de 67,1 anos (64 para os homens e 70,3 para as mulheres) para, em 2009, 79,2 anos (76,1 homens/82,1 mulheres). Este é um grande salto qualitativo que, obviamente, não se ficará apenas a dever a uma melhor qualidade de vida, da alimentação à assistência médica, mas também aos constantes progressos da ciência e da medicina, de cujos efeitos somos todos beneficiários. É impressionante verificar igualmente que, só na última década, mais precisamente entre 2000 e 2009, a nossa esperança de vida aumentou em cerca de 3 anos, sendo de 76,4 no ano 2000 e, em 2009, de 79,2 anos (por sexos, o salto é de 72,9 para 76,1 no caso dos homens e, no caso das mulheres, de 79,9 para 82,1 anos). Este é, sem dúvida, um caso de sucesso a que o Serviço Nacional de Saúde, instituído após a revolução de 1974, não será estranho, nem, obviamente, a melhoria das nossas condições e qualidade de vida. 

Também em matéria de mortalidade infantil demos grandes, surpreendente passos, passando de 77,5% em 1960 (sim, nessa época quase 78 em cada 100 crianças faleciam durante a infância!) para 2,4% em 2009. Estes são números de que nos devemos orgulhar, colectivamente, e que devem ser exaltados para que, também noutras áreas, nomeadamente as económicas, sejamos encorajados a fazer com que mais milagres como este aconteçam. Não se deverá esquecer no entanto, e mais uma vez em abono da verdade, que não só uma melhor alimentação e cuidados médicos terão contribuído para este notável resultado, mas também os avanços da ciência. 

De facto, muitos sectores há, e não só o da saúde, onde se verificaram grandes progressos de Portugal ao longo das últimas décadas: 

Os casos de tuberculose identificados em Portugal têm vindo a decrescer ano após ano, de 194,5 casos por cada 100.000 habitantes na década de 60 do século passado para os actuais 25,9 pelos mesmos 100.000 habitantes. 

O número de vítimas em acidentes de viação também tem vindo a descer – das 5,4 vítimas por cada 1.000 habitantes, dado registado em 1992, passámos em 2010 para as 3,5 vítimas quantificadas pelo mesmo número de habitantes. A este resultado não serão estranhas a modernização das nossa estrutura rodoviária e da frota automóvel do País, mais do que cuidados de prevenção ou educação dos condutores, onde muito há ainda por fazer. 

Em 1960, tínhamos um médico para cada 1.253 portugueses; no ano passado, cada 256,7 habitantes tinham um médico ao seu dispor. 

Em 1991, o país contava com 1,9 diplomados por cada 1.000 habitantes; em 2010 com 7,4 diplomados para o mesmo número de portugueses. 

Em 1961, apenas 1,3% dos portugueses frequentavam o ensino secundário; em 2010, existiam 71,4% de jovens a frequentar o ensino secundário. 

Em 1970, apenas 1.081.210 de habitações possuíam água canalizada, número que subiu para 3.502.726 de habitações em 2001; em 1970, 1.325.960 habitações contavam com instalações sanitárias, em 2001 esse número cresceu para 3.371.464 habitações; e os números são muito aproximados para outro tipo de equipamentos, tais como electricidade, cozinha ou esgotos – de pouco mais de um milhão de alojamentos que contavam como esse tipo de infra-estruturas, esse número, já em 2001, ultrapassava largamente os três milhões. 

Poder-se-á argumentar, e quem o fizer está no seu pleno direito, que tudo isto custa dinheiro, dinheiro que o país não produz em quantidade suficiente para fazer face a todas as exigências de um modelo social que está, também se diz, esgotado. A esses, eu contraponho: o país tem que saber produzir mais, sem dúvida, estamos a gastar demais, é certo, mas a contenção de custos, a salvação da economia, não passa, não pode passar, por uma regressão civilizacional. O modelo social europeu é sustentável desde que, para além da mais do que desejada revitalização económica, industrial e agrícola do País, se tomem medidas de contenção da despesa pública muito sérias e muito rígidas, mas nunca sustentadas na eliminação do Estado Social que vigora na Europa desde o final da II Grande Guerra, em Portugal desde 1974, e do qual todos nós nos podemos orgulhar apesar do muito que ainda há por fazer. Para isso, e não sendo nem político nem economista, mas um simples cidadão atento à vida e à vitalidade do seu país, auguro que: 

Se faça um controlo rigoroso dos gastos na despesa pública, através de uma melhor racionalização e gestão dos recursos humanos, produtos e equipamentos. Nunca através do corte cego nas despesas, com prejuízo evidente na qualidade de vida das populações, como tem sido levado a cabo nos últimos anos, mas sim através de uma melhor utilização desses recursos e da eliminação de despesas supérfluas ou inspiradas em interesses obscuros; 

Se reduza o número de deputados da Assembleia da República, para além da eliminação de grande parte das suas mordomias (reformas antecipadas, ajudas de custo injustificáveis, viagens supérfluas, subsídio de alojamento e outros); 

Se extingam as centenas de Institutos e Fundações que não tenham evidente utilidade pública; 

Se acabe com a renovação sistemática da frota automóvel do Estado, ajustando-se o seu plafond, quando absolutamente justificável a aquisição de viaturas, para níveis consentâneos com a situação económica do País; regularizar o uso das mesmas, de forma a não serem utilizadas a não ser para o fim a que se destinam, ao serviço do Estado; 

Se cancelem os milhares de pareceres jurídicos requeridos, pelas mais variadas instâncias públicas, a grandes sociedades de advogados a elas de alguma forma afectos, eliminando de vez este sorvedouro de dinheiros públicos e este tráfico de influências que urge criminalizar; 

Se impeça que uma mesma pessoa beneficie, entre o Estado e entidades privadas, de mais do que uma reforma, com a agravante de que muitas dessas reformas são fruto de curtos períodos de prestação de serviço público, como tal condenáveis quanto mais não seja sob um ponto de vista moral e ético; 

Se limitem, de uma vez por todas, os salários e bónus dos gestores de empresas públicas, escandalosos quando comparados a países de níveis salariais bastante mais elevados do que Portugal; 

Se extingam de imediato todas as PPPs (Parcerias Público-Privadas), que mais não são do que formas habilidosas de passar, para entidades privadas, empreendimentos de responsabilidade estatal, sem qualquer controlo de custos, quase sempre exorbitantes, pagos pelos contribuintes portugueses; 

Se criminalize, sem subterfúgios nem protelamentos de qualquer natureza, o enriquecimento ilícito, perseguindo, confiscando e punindo os responsáveis pelo desvio de dinheiros públicos; 

Se controle a actividade bancária, de forma a nunca mais serem possíveis operações financeiras especulativas de alto risco, pondo em causa a própria sobrevivência de Portugal como nação; 

Se taxem devidamente os bancos e se eliminem as off-shores

Se acabe com a fuga ao fisco e a fuga ilegal de capitais para o estrangeiro. 

Como muito bem escreveu Stéphane Hessel no seu livro “Indignai-vos!”, e passo a citar, “Ousam dizer-nos que o Estado já não consegue suportar os custos destas medidas sociais. Mas como é possível que actualmente não tenha verbas para manter e prolongar estas conquistas, quando a produção de riquezas aumentou consideravelmente desde a Libertação, quando a Europa estava arruinada? Apenas porque o poder do capital, tão combatido pela Resistência, nunca foi tão grande, insolente, egoísta, com servidores próprios até nas mais altas esferas do Estado. Os bancos, agora privatizados, preocupam-se principalmente com os seus dividendos e com os elevadíssimos salários dos seus administradores, e não com o interesse geral. O fosso entre os mais pobres e os mais ricos nunca foi tão grande; e a corrida ao capital e a competição nunca foram tão incentivadas”. 

Não podemos, não devemos, não queremos comprometer a qualidade de vida de todos os portugueses, quanto mais não seja a dos nossos filhos, abrindo mão de prestações sociais que cumpre ao Estado e só ao Estado preservar e garantir. Porque os subsídios de emprego, os serviços de saúde e de ensino universais e tendencialmente gratuitos, as pensões de reforma, as infra-estruturas do país, não são esmolas, são um direito inalienável das populações. Nós pagamo-los. Com impostos cada vez mais elevados. E, convenhamos, cada vez mais desperdiçados. 

FONTES CONSULTADAS:
Os dados, recolhidos no artigo “Agravamento das Desigualdades em Portugal”, publicado pelo economista Eugénio Rosa em http://resistir.info/portugal/desigualdades.html, referem-se a 2003, antes do alargamento da UE aos países do leste europeu, mas, sabe-se, o agravamento das desigualdades tem vindo a acentuar-se desde então. Dados mais actualizados poderão ser encontrados em http://epp.eurostat.ec.europa.eu

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