e se em setembro fosse diferente?


Por José Vítor Malheiros
http://versaletes.blogspot.pt

Vivemos sob a ditadura do sistema financeiro, sob a bota de um poder absoluto, anti-democrático e sem controlo. Que parte é que ainda não percebemos?

As pessoas andam caladas. Na rua, nos centros comerciais, nos transportes públicos, nos cafés e restaurantes. Até nas manifestações é difícil pôr uma multidão a escandir uma palavra de ordem e, quando o fazem, dura pouco. Custa-lhes falar. Ou será só impressão minha? Mesmo tendo em conta a redução do número de pessoas em certos locais da cidade devido às férias, tenho a sensação de que as pessoas cada vez falam menos, mais baixo, com menos energia. Acho que estão deprimidas, tristes com a vida, desiludidas umas com as outras e envergonhadas consigo. Haverá uma relação entre o barulho que se faz e a felicidade que se sente? Acho que sim. Basta ver um grupo de crianças a brincar num jardim e um grupo de bancários a pegar ao trabalho. Mas não é só a tristeza que é silenciosa. O medo também é. O medo faz-nos querer passar despercebidos. Os cafés do tempo do medo eram cafés de silêncios, de murmúrios, de olhares furtivos, de sombras curvadas em cinzento. E as pessoas estão outra vez com medo.

Vejo isto e penso nas manifestações espanholas. Espanha sempre foi um país ruidoso, onde se falou alto, demasiado alto, apaixonadamente. Várias vezes, em reuniões com amigos espanhóis, tive de explicar a alguém que assistia que não, não estávamos zangados, estávamos só a falar, a discutir literatura ou a trocar histórias.

Mas por cá, é diferente. As pessoas estão descontentes mas guardam o descontentamento para si, engolem a amargura e continuam a cavar a terra dura em silêncio, como velhos camponeses. Serão ainda os 48 anos? Irá durar muito mais? Será genético? Será geográfico? Se em Espanha as multidões fervem, aqui as pessoas parecem em banho-maria, sempre abaixo do ponto de ebulição.

O que é mais espantoso é que as pessoas andem deprimidas, tristes com a vida, desiludidas umas com as outras e envergonhadas consigo mesmo em vez de estarem furiosas com aqueles que as humilham e as roubam, em vez de se indignarem e revoltarem contra os que as mantêm mergulhadas na miséria, contra os que lhes mentem e continuam a mentir, contra os que os vivem no luxo comprado com o fruto das pilhagens aos mais pobres.

Como é que é possível que uma manifestação de desempregados em Lisboa tenha 500 pessoas? Como é possível que as pessoas não se indignem quando lhes roubam a saúde e a educação dos filhos? Como é possível que não reajam quando lhes dizem que o fruto do seu trabalho durante a próxima geração deve ir para os bancos e que tudo o que conquistaram lhes será confiscado?
Como é possível que não se revoltem ao ouvir o ministro “da Solidariedade” Pedro Mota Soares falar das fraudes do RSI mas abster-se de condenar a gigantesca fraude que é o sistema financeiro? Como é possível que não se revoltem perante a fraude que é a existência dos paraísos fiscais - como a Madeira e muito outros, na própria União Europeia - onde os ricos escondem o seu dinheiro para fugir ao fisco? Como é possível que não se revoltem perante o escândalo das PPP que sangram o Estado para encher o bolso de meia dúzia de empresas de primos do regime? Como é possível que não se revoltem perante o escândalo das privatizações cozinhadas entre os amigos e conhecidos do Governo? Perante uma justiça que parece existir apenas para reprimir os mais pobres e permitir os abusos dos mais ricos? Como é possível que não se revoltem perante as agências de rating e os bancos que traficam as taxas de juro em benefício dos grandes especuladores e em detrimento da economia real, dos trabalhadores e dos Estados? Como é possível que não se revoltem quando, fechando os olhos a estas fraudes, o Governo tem a lata de lhes dizer que viveram acima das suas possibilidades e que é necessário que paguem as dívidas que alguém contraiu em nome deles? Quando lhes dizem que essas dívidas, contraídas para pagar juros de dívidas que ninguém sabe como nasceram, devem ser pagas “custe o que custar”?

Vivemos uma gigantesca fraude, uma pseudo-democracia que é na realidade uma ditadura do sistema financeiro, onde um poder absoluto, anti-democrático e sem controlo domina a União Europeia, impõe e depõe Governos, fabrica as leis que quer e desrespeita as que não quer, compra políticos, controla a máquina do Estado em seu benefício, se apropria dos bens que pertencem a toda a sociedade através de privatizações e escraviza populações inteiras condenando-as a penas perpétuas de trabalhos forçados para pagar dívidas a juros agiotas.
A situação que vivemos não é apenas financeiramente insustentável, não é apenas economicamente insensata, não é apenas ambientalmente irresponsável. É também eticamente inadmissível, é também politicamente intolerável, é indecente e desumana. Por isso, o que acham de usar este Agosto para retemperar forças e de regressar em Setembro dispostos a perder a vergonha, a recuperar a voz e a reclamar os vossos direitos? São os meus votos para as vossas férias.

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