do racionamento


Por Pedro Vieira

porque até é fácil um tipo deixar-se embalar pela lenga-lenga do regime à conta de tanta repetição, e não tem mal nenhum, a exposição continuada à repetição tem dado belas obras-primas como a Laranja Mecânica, filmada pelo barbudo com cara de mau, e pode até ser muito útil no controlo social e na promoção da resignação, ainda por cima com a ajuda da clássica culpa judaico-cristã, gastei o que não devia, vivi acima das minhas possibilidades, fui a punta cana graças a 12 prestações, comprei uma casa quando podia muito bem ter um senhorio, enfim, a lista é gorda e promete engrossar, de cada vez que um gajo respira o país afunda-se, a dívida, o défice, as contas públicas e a sua derrapagem, os recursos que são escassos e mais-que-finitos, no fundo seria uma benção um gajo não ter daqueles arremedos ocasionais em que pensa "mas há riqueza que baste, está é mal distribuída", não é preciso um gajo ler o marx para saber destas coisas, caralho, aliás, leituras a mais até atrapalham e fazem doer a cabeça e dão cabo das dioptrias, e eu dessas já as tenho quanto baste, não vou desbaratá-las enquanto faço a exegese do capital, três tomos nas edições avante, escrito por aquele barbudo com cara de mau (este, não aqueloutro), tenho é de pensar em levar a vidinha certa, sem sobressaltos, para agitação já me bastou nascer no verão quente de 75 numa casa que enfim, numa casa com os recursos mais-que-finitos, numa casa fiel àquela lógica do filho que vai ter uma vida mais desafogada do que a dos seus pais, e tenho-a, precária mas muito mais facilitada, passe a contradição nos termos, do que a da deolinda e do abílio, na verdade um gajo habitua-se a tudo, a não ter contratos, a ver subsídios e apoios e protecção por um canudo, isso de viver em comunidade foi chão que deu euros, um gajo habitua-se a estar na vida como se veio ao mundo, um tudo-nada desprotegido mas com alguma fé no futuro, não pode ser tudo mau, até porque aconteceu o 25 de abril, fait-divers que me põe os olhos cheios de água quando o vejo retratado na televisão, logo eu que já não o apanhei a tempo, mas pronto, corriqueirices de quem por vezes se deixa levar pelo sentimento, mesmo numa época em que já nem há grande margem para isso, precisamos é de exportações, não de emoções, quer dizer, é impossível um tipo não se comover quando vê centenas de milhares de pessoas a caminho da praça de espanha, que não é um sítio assim tão bonito, centenas de milhares de pessoas que quiseram dizer basta e mostrar que são gente e não números numa tabela de excel, músculos e sangue e suor e nervo em vez de fórmulas oferecidas pela lógica dos zeros e uns, demonstração que nem sempre é fácil de fazer, os senhores que nos representam (?) só repetem "paga o que deves" ou, numa versão mais musculada, "não me filmas a cara", mas se calhar já é tarde, é que chegados ao ponto em que já assimilámos uma fatia do mea culpa, não há como evitá-lo, o segredo da repetição continuada, da novilíngua, é vencer pelo cansaço, também embarco nisso a espaços, não sou um revolucionário profissional imune à manipulação e que acredita nos amanhãs que cantam e em políticos enforcados em postes de electricidade, dommage, sou fraco como muitos outros mas tendo uma janela de oportunidade, como dizem os senhores que tratam do bizz, ainda me exalto, ainda me indigno, como aqueles corpos mais ou menos perdidos para a vida que se deixam sacudir por choques eléctricos, ainda tenho vontade de falar, de dizer, e por andar muito nas internetes digo muitas coisas sem reflectir, digo muitas coisas depois de reflectir, funciona assim mais ou menos à vez, e agora digo que os cortes o desemprego a austeridade o subsídio de férias a tsu os escalões de irs não são nada, comparados com a ideia peregrina do racionamento nos medicamentos destinados aos doentes terminais, que no fundo são um encargo para o estado, um peso quase-morto, depois vêm os pragmáticos que dizem "se já não há esperança, se há gente a quem se pode abreviar o sofrimento, mais vale atalhar caminho", acontece que para muitos um dia, mesmo em profunda agonia, não deixa de ser um dia, tanto para quem está de saída como para quem fica, somos humanos, caralho, e a nossa necessidade de consolo é impossível de satisfazer, pois claro, e pelos vistos a procura do consolo sai muito cara aos contribuintes. digo muitas coisas sem reflectir: os senhores da comissão de ética para as ciências da vida são uns filhos-da-puta. digo muitas coisas depois de reflectir: os senhores da comissão de ética para as ciências da vida são uns filhos-da-puta. pim. assim, como no texto do almada.

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