o pré-aviso de demissão do governo

Por Ana Sá Lopes

A “narrativa” já está pronta para o dia em que o primeiro-ministro anunciar ter chegado “ao limite das suas forças” o que, a avaliar pela comunicação de ontem, não deve faltar muito. O governo estava a fazer tudo bem, cumpria os compromissos com “os nossos credores”, não falhava um número, um objectivo e uma estratégia, estava cheio de cuidados a atravessar a floresta, e depois veio o lobo mau e comeu-o.

O lobo mau tem diferentes personalidades: o que foi mais directamente visado foi o Tribunal Constitucional, que se recusou a suspender a Constituição em nome do mandamento de que “em tempo de excepção as nações podem precisar de respostas excepcionais” [sic]. Falando a partir de um Olimpo imaginário, Passos Coelho decidiu tomar-nos a todos por parvos e desfiou um rosário de bondades e sucessos do programa da troika, apenas posto agora em causa por causa do famigerado Tribunal Constitucional.

Mas há também o lobo mau de Belém que cometeu a indelicadeza de utilizar um dos seus poderes - aliás, cheio de timidez, porque o deveria ter feito previamente - que foi o de enviar o Orçamento do Estado para fiscalização sucessiva. O lobo mau de Belém também não esteve à altura das “circunstâncias excepcionais”, pelos vistos, e Passos decidiu fazer-lhe uma visita inopinada num sábado à tarde para obter um comunicado gélido onde o lobo mau de Belém escreveu o óbvio ululante: o governo mantém legitimidade política. Ao ameaçar ontem que o programa da troika vai para o espaço sem o “compromisso duradouro” dos “órgãos de soberania” e dos “partidos do arco da governabilidade”, o chefe de um governo detentor de maioria absoluta traça o seu destino e escreve a narrativa a apresentar depois. A culpa da queda do governo - e do segundo resgate, que não precisava dos juízes para se fazer anunciar - é do Tribunal Constitucional, do Presidente da República e do maior partido da oposição que assinou o Memorando e recentemente descolou.

A vitimização de Passos Coelho foi um espectáculo pouco edificante. O primeiro-ministro já só está em funções em corpo - o espírito já voou para outras paragens. Aliás, do ponto de vista do interesse meramente partidário, é mais útil ao PSD demitir- -se já, desencadeando eleições antecipadas - enquanto o PS não está suficientemente forte - do que daqui a dois anos, com tudo de pantanas, Portugal igual à Grécia e o risco de pasokização nas urnas. Já ninguém precisa de gritar “demissão já”. O primeiro-ministro já a interiorizou.

Fotografia: Mário Cruz/Lusa (http://www.ionline.pt)

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